quarta-feira, 30 de março de 2011

Ao que não é muito certo

Aquele inseto havia dormido por ali. Ele era escuro, e assim escolheu um lugar na sombra. Aconchegou-se, por assim dizer, ao mesmo tempo do meu sono. O inseto deitou-se, com suas asas abertas, eram das formas das asas de uma borboleta, porém, as cores cintilantes das asas, de um marrom escuro, faziam provar, que não era bem uma bela borboleta. E se era de alguma beleza, não o saberia, apenas penso o quanto parei na manhã de chuva, para ver o inseto que se aconchegava.

A contar, cerca de dez minutos, sei que fiquei por ali estática. Os olhos grandes e pretos eram maiores. Tomaram o meu tempo como costuma tomar o barulho da chuva. Uma certa impressão contingente, de tempo parado, que se dá por outra impressão maior. O tempo que se transforma numa visão. E os meus olhos, também, ficaram maiores. Era a cor castanha, espalhada em sur tons sobre toda a superfície de seu corpo. Seus olhos apresentavam-se flagelados, com rachaduras finas, bem finas, e negras. Eram olhos de um animal da noite, e aquela tinta, a tinta da noite, escorria por todo o resto de seu corpo, encolhido que estava, eu podia ver.


A minha visão absorvia, um sulgo denso, de uma tinta negra. Um olhar que se fazia preto, e o dia já claro, de repente, escureceu. Dizem da noite, uma sombra constante. A calma da noite, é o que dizem. Mas dele, eu só tinha a dizer medo. Um certo medo que apavora, sem causas de perigos reais. É o medo sem substância, enevoado como a nossa fantasia. A nossa fantasia. Um olhar negro aberto ao desconhecido. Um olhar que busca o que não enxerga, e tenta aprimorar da hora parada, o invisível.


Era a hora da chuva. E perto dele me aconcheguei. Como quem dorme um infinito sem hora, do prazer pelo desprendimento. Perto dele me encolhi, pela insegurança de estar tão próxima ao que não se conhece – daquele bicho que não era borboleta. Uma bruxa, poderiam dizer, mas não. Ele era belo, sua beleza transparente e leve como suas asas que dormiam. Dormi este sono em pleno dia, para me acorbertar da fina camada que nos resta, do que ainda não foi nomeado.

segunda-feira, 28 de março de 2011

No tempo do avô

Quando pisava, sentia seus pés, afundarem-se um pouco. Foi assim, desde criança. Então, com um esforço que lhe era maior, puxava o pé de volta e o retirava dali. Todo passo era desse esforço, um colocar e tirar os pés, numa rigidez de postura, a do seu caminhar.

Mas não tinha escolha. Erguia a vista sempre à frente, extendida como uma ponte perpendicular, que cai sobre um seu desejo, um seu desejo, pensava, enquanto esforçava-se para retirar o pé direito que havia ficado preso junto ao chão. Era o caminhar um peso, se não fosse, aquele castelo, colado ao fundo de um tempo outro. Castelo.

Reencostado numa poltrona de couro, e com os pés para cima, próximo à lareira, ouvia do seu avô, histórias de tribos indígenas, de suas expedições às grandes florestas do mundo. As grandes florestas do mundo, ele diria, com os olhos azuis latejantes de tanta emoção. Ele diria que mergulhou em cachoeiras de quedas d’água altíssimas . E que no seu mergulho, conseguia tocar com as palmas da mão as rochas do fundo. Aquele era o seu avô. E enquanto se lembrava, nunca havia sentido suas pernas tão pesadas. Uma certa tristeza, simplesmente. Seria impossível por si mesma, caminhar tão vastas aventuras sozinha, tomar o lugar de seu avô, que não mais estava por perto.

Seu caminhar, a cada dia, a cada passo, vagarou-se, vagarou-se. Teve um dia que a palavra tomou o andar. Delicadamente, a palavra, e a fez sentir uma leveza que só. Eis que o encontro com o avô se deu de outra maneira. Sentava-se novamente, bem próxima ao avô, para ouvir suas histórias. E desta vez, podia a narrá-las.


Foi que percebeu, que o caminhar para frente só ganharia sentido na busca por um sonho que apenas por si é conhecido. Sonho que só se tem na infância, que, só se tem na infância. Ao desejo mais tenro, um caminho outro. Decidiu deixar os passos. Parada, reencostada sobre aquela, poltrona de couro herdada, continuou a escrevê-los.


Nunca mais sentiu o pesado.